quinta-feira, 29 de abril de 2010

historieta salobra

onde a brisa é fresca e acalma, existe
uma árvore boa na beira do mar,
mas ali não dá pé.
a fruta doce da árvore boa
cai na água e mergulha
até o fundo.
cria tufo e limo.


Ana Claudia Abrantes
29 de abril de 2010

(Crianças pediram-me uma história feliz e maior, mas essa é desencantada e curta.)

terça-feira, 27 de abril de 2010

autorretrato caído,
caiado.
pó de arroz número mínimo,
o mais claro.
quero ver quem terá a cara de pau
de me enrubescer.




Ana Claudia Abrantes
27 de abril de 2010

origem

do pó, deus ergueu
o que já estava feito
e soprou em suas narinas o sopro da vida.

por isso até hoje é difícil
respirar sozinho.




Ana Claudia Abrantes
27 de abril de 2010

Não morreu.

Dom Quixote, Sancho Pança, meu irmão, minha cadela Brigite, Diadorim, Riobaldo, Fafafa, Rocinante, o asno. E o que fazer agora se tudo já foi dito? Consagrar cavaleiros andantes a todos os que escrevem, senhores do que não há a dizer.


Ana Cl.
mais que humildemente
hoje

quinta-feira, 22 de abril de 2010

A natimorta

Em toda a sua vida, só deu a luz a três natimortos, todos os outros ela abortou. Um dia escolheu morar vizinha ao cemitério da cidade litorânea. Uma madrugada por ano, ela se esgueirava pelas ruelas do campo santo na tentativa de não ser vista pelos vigilantes e depositava ao lado de qualquer mármore ainda úmido o seu fruto seco, inteiro ou pelas metades. Com doze fósforos formando quatro hastes em apressada cruz equilátera, ela acendia o pequeno peito ou o que fosse um braço, e o fogo era rápido. Um dia, foi descoberta. Investigaram-na, deram-na como louca, prenderam-na, ela fugiu. Mudou para ainda mais distante da orla, mas, mesmo assim, todo ano passaram a surgir os delicados destroços de uma luta orgânica, no mar. Os pescadores, pensando que os tristes achados eram de mau agouro, procuravam aterrorizados não tocar e deixavam que o mar engolisse de volta o que era dele. Nunca mais foi pega. Por isso adquiriu confiança em sua sina. Passou a oferecer seus restos inanimados em auroras anuais, quando a madrugada encontra a luz baça e a penumbra, e quando o céu tem a cor dos seus filhos. Mas, apesar da longa caminhada de volta no sol já alto, ela cumpria; os anos corriam e ela seguia, cada vez mais pálida.



Ana Claudia Abrantes
22 de abril de 2010

ladrão de galinhas (ou causa e consequência)

vinha de longe, espiava e só roubava tralhas do quintal. Se ao menos tivesse levado uma das rosas, teríamos feito entrar.




Ana Cl
hoje

Manhãs

Manhã


Numa cabana velha e alheia à glória, um selvagem guardava um mundo encantado sem palavras nem silêncios. Guardar também é o segredo dos meus versos. Para eles uma turba não seria mais que uma pessoa. E eu já tenho a minha.

(Para J.)


Noite


Uma sonhadora que amou sozinha pendura o próprio túmulo pelo pescoço na moldura da cama e chuta. Ficam os pés soltos no ar feito um móbile trágico.


Madrugada


Veio um covarde e disse que queria o tesouro de peças inúteis de significar nada. E viu nelas a beleza de que precisava e recebeu o direito de recolhê-las para si, e assim se redimiu. Há mistérios que redimem a covardia.





Ana Claudia Abrantes
21 de abril de 2010
(Depois de assistir ao filme Todas as manhãs do mundo.)