sexta-feira, 19 de março de 2010

Decisão

Nunca dar passagem a táxis. Não dar passagem a Kombis, nem a vans. Temer os ônibus e as 147 que acreditam que podem.


A. Cl.

Escuta,

teu silêncio não é produtivo, é pura falta de comunicação mesmo. Até que antigamente eu gostava dos mistérios mudos, que eu precisava interpretar. Mas meu dedo agora escolhe o diálogo, ainda que alucinado; meu poema é que não. Formula uma frase completa com sujeito simples ou composto, um verbo, um objeto. Convença-me da tua gramática pessoal. Quem sabe.


Ana Cl.
hoje

quinta-feira, 18 de março de 2010

embargo

assim ficou a vida.

ponte suspensa pelo meio,
escorrega dos dois lados.




Ana Claudia Abrantes
18 de março de 2010

Mariposas

Eis a luz. Ela é fraca e por isso chama mariposas feias, grandes e marrons, sem as queimar. Ela é morna e parece úmida, como nos ventres em que se tem água sem mendicância. E água não se nega. Os viadutos sujos são porto para mariposas, mas aqui elas sonham o impossível sonho de libélula. Que vai só, buscar a própria água.



Ana Claudia Abrantes
18 de março de 2010

Esperança

Sob os panos da capa e sem memória, um rosto.
Nas costas uma bagagem que se teve de aprender a jogar fora.
Um vento sagrado em lacunas,
Em vazios por onde se esvaem os méritos e todos os dons.

Ainda assim o homem pinta
Uma flor brotando no compasso dos pulsos, dos pulsos.
Por fora e no pulso só um botão, por dentro o caule na veia.
E em todo o antebraço interno, o hematoma roxo, amarelado
Na base da branca flor.
É necessário com cuidado puxá-la
como se puxa uma fístula por um fio, fístula-flor;
puxá-la quase cirurgicamente pela veia.
E depositá-la para adorno dos olhos
Atrás das orelhas a dor
Nos olhos.

Mas para passar a dor é preciso
Comer o céu de Chagall
Dançar de vermelho
Dar quatrocentos murros nas palavras e depois se render.
É preciso esvaziar de si o sopro e derramar sobre todos os papéis soltos (!) quando um anjo passar.
Nada voará em vão quando um anjo passar.
Sobre o desconsolo, sobre o consolo do silêncio, o vento.


E então sobre a capa agora um novo rosto
Na moldura de flor presa às orelhas.
Sobre a capa sacudida, com os olhos enfeitados de flor,
Limpar o rosto,
Limpar os pulsos.
Limpar o rosto do pó que o vento não levou,
Limpar os pulsos dos estragos da flor.
Fotografar de novo e enfim o rosto ao vento.
Fotografar de novo e sem véu
o céu.


Ana Claudia Abrantes
18 de março de 2010
(Para J.)

quarta-feira, 17 de março de 2010

envenenamento

a ampulheta obstruída pára o passado.
a terra até virou cal.
e eu aqui, salpicando as cinzas na comida,
como se fosse sal.



Ana Claudia Abrantes
17 de março de 2010

terça-feira, 16 de março de 2010

Como e por que ler os clássicos universais desde cedo

"... Mas lembro sobretudo e para sempre de como eu torcia por aquele herói que queria consertar todos os erros do mundo, ajudar todos os sofredores, defender todos os oprimidos. Em seu esforço para lutar pela justiça e garantir a liberdade, o fidalgo não hesitava em enfrentar os mais tremendos monstros, os mais pérfidos feiticeiros e os mais poderosos encantamentos. Nunca desanimava, mesmo tomando cada surra terrível, quando esses perigos ameaçadores se revelavam apenas alguma coisa comum, dessas que a gente encontra a toda hora no mundo. E então as pessoas achavam que Dom Quixote era maluco, riam dele...
Eu não ria. Metade de mim queria avisar ao cavaleiro: "Fique quieto no seu canto, não vá lá, não, porque não é nada disso que você está pensando..." A outra metade queria ser igual a ele. Até hoje." (Ana Maria Machado em Como e por que ler os clássicos universais desde cedo)

Quanto às ideias que passamos sobre os livros na nossa prática profissional:
Concluo que somos capazes de filtrar tudo erradamente, ou filtrar acertadamente para os olhos e ouvidos mais incapazes de ver e ouvir. Acho que algo que eu faça com paixão ganha o perdão da entranha. O leitor cresce, se solta. Ele há de fazer seus outros e próprios filtros. Como Ana Maria M. fez.
Eu me ofereço o perdão da entranha.

Ana Cl.
hoje

domingo, 14 de março de 2010

cena inurbana

rápido, um beijo apertado. a chuva, o vento. do táxi, um tchau possível, mas quem se despede? teu terno sorriso nos meus olhos.


Ana Cl.
hoje

sábado, 13 de março de 2010

Receita de comer chocolate crocante transcendentalmente

primeiro sugar todo o chocolate. deixar os flocos no alto da língua, que a boca vira um céu de estrelas. morder. e o firmamento se faz com estalinhos. depois, meditar.


Ana Claudia Abrantes
13 de março de 2010

quinta-feira, 11 de março de 2010

Pontuação ?, !?, !!!, ...

Os pontos finais são perfeitos na poesia, porque a arte pede que se adivinhe. Por isso, reticências e exclamações são desnecessárias esteticamente. Só alguns privilegiados mestres!, gênios!!, reis!!! podem se dar ao desplante, ao disparate do exagero: o heterônimo Álvaro de Campos, Mário de Andrade em seu momento mais ... ui... futurista, Mariana Alcoforado, Florbela Espanca, Álvares de Azevedo. Só tipos como esses podem. De resto, admiro e me deleito com a arte assim: que dá pouco para que se deduza o muito. Ponto.
Mas, na vida, hei de amar os bregas, os catatônicos, os patéticos, os mentirosos exagerados. Hei de encontrar o amor na doença, no pânico e nas manias, nos meus espelhos tortos e enferrujados, nos espelhos de circo, que me deformam, que me invertem, que me põem maior ou tão menor do que eu pensava que era. Na vida, é o visgo que me chama, não a seiva, é a cica que me surpreende, não o sumo; é o palhaço torto, feio, assustado, não a atriz enfeitada de algo que não é a própria vida. Hei de amar quem ama os ratos e morcegos mesmo que eu não ame ratos e morcegos, hei de morrer por quem me mata, hei de sofrer a ascendência de quem me domina, hei de contrair doenças por amor, hei de curá-las por raiva. Na vida, hei de suprir o amor a quem não ama a si próprio, hei de morrer por minhas causas injustas, validada apenas pelo fato de que são as minhas causas injustas. E não me arrepender de ter morrido e não viver de novo sem um cimo, um sino, um ritmo, uma obra que me contagie a inteligência e a vontade. Na vida, mais que os sotaques e sinais diacríticos na voz de meus amores, quero-os com uma combinação de interrogação e susto, quero-os com a vivacidade do pulo no abismo, quero-os com a pura indagação de quem esquece tudo, quero-os com força e devagar. A é uma interrogação constante, B é uma interrogação acompanhada de exclamação vívida, C é meu buraco negro de exclamações em sequência e D há de ser pra sempre minhas reticências. Não ligo para E, que nunca exclama.
Na arte, é suficiente o ponto e fim, ela se basta e se amplia além dos meus contornos, ela já é grande. Mas a vida só me anima quando se me dá transbordando, mesmo que eu nunca tenha sabido exatamente o que fazer com isso.

Ana Claudia Abrantes
11 de março de 2010