quarta-feira, 28 de novembro de 2007

água na boca

mastiguei tua presença como se estala sal na ponta da língua
como sorvendo ardência de tamarindo
como adoçar limão na ostra
que saliva em pêlo áspero,
cai em gota cítrica
que quebra, enfim,
caquinhos ácidos
nos pés
nos pés
nos pés.

Ana Claudia Abrantes

rasos d'água (2º tempo)




lácrima plus a olho nu vista
é lupa por atravessar o olho mágico.
num frasco plástico de solução coloidal,
plus lágrima estepe.
para olhos secos e soluções ressecadas.

mas

por trás das pálpebras
um oceano de luz a dentro: fotofobia.

a solução oftalmo-lógica é enfocar-te e tu a mim.
ph neutro para alívio da córnea, meu coliriozinho de afeto,
beija-me os olhos fechados!
e venda-me a todos os defeitos
para umectar-me a alma, o corpo e meus olhos azuis,
claros.

Ana Claudia Abrantes

terça-feira, 20 de novembro de 2007

constatação




o meu amor é a minha história


ambígua de prazer e dor.


mas as melhores coisas dessa vida...


todas têm duplo sentido.





Ana Claudia Abrantes - poema

Jacques Kalbourian - imagem

mandamentos


amar também o esdrúxulo sob a pele,

mastigar as margaridas sobre a mesa,

deitar com um corpo cujas carnes,

dobram-se sobre suas carnes que serão iguais.

nunca fugir das putas, e sim pedir-lhes informações

das mais corriqueiras.

na adolescência não fumar nem cheirar

porque há o perigo de tragar o próprio corpo, e sabe-se.

saber-se aberração _

fantasiada com a moral, é um segredo.

amantes e amigos não se aproximariam se soubessem

a inocência vil, o verme

que excreta flores.

mas amar

e pagar também o preço.

e depois de provar tudo,

voltar todos os dias

tradicionalmente azul.


Ana Claudia Abrantes

Sob influência do filme “A pele”.

sertão


ser tão dentro...

ser nada.

árido ser tão sem água.

ser tão dentro, sertão:

terra fértil, infértil craquelada

pela seca desses tempos tão sem.

ser tão dentro hoje é

sertão dentro aqui.


Ana Claudia Abrantes

o bonde

e eu não vou fugir na contra-mão

porque o bonde só quebra quem se choca

e só pega quem corre ou salta

ou faz outro malabarismo qualquer.

ademais

meu pai amava andar de bonde

porque lá se contempla o que se deixou ao correr

e o que se quer alcançar, sentando.

pai, o bonde é mesmo uma lição de vida.


Ana Claudia Abrantes

incompetência

amar em diagonal é coisa mais esquisita

mas ama-se

ama-se um alcoólatra, uma falsa,

ama-se a testa franzida (tão bonita) dele.

ama-se até o barulho que ela faz ao mastigar.

ama-se quem se engrandece e quem se anula.

amar, em geral, não é coisa desse mundo, não.

é uma visita que o Amor insiste em fazer a esse planeta

e depois vai embora,

deixando o homem com essa rosa em botão

(ele não sabe cuidar)

nas mãos aflitas.


Ana Claudia Abrantes

estética da violência (sobre meninos e bailarinos)

a vida sem poesia é corpo em risco em queda em livre audácia do impacto,

em choque cáctus _ tenso elástico rompido.

é também uma estética, uma fórmula máscula do selvagem épico-narrativo

de menino abrupto.

a vida sem poesia é haste tensionada até o máximo grau impossível, é teste.

é testículo, é a testosterona dos sentidos primários na força ancestral bruta real patética e necessária (?).

é baque, é batuta, é percussão de samba sem letra candomblé e batente.

Scorsese, Tarantino, macacos e meninos sem lei.

é pega, é polícia, é favela de verão, futebol, urro rock Rio fálico trágico tiro e faca.

a vida sem poesia é corrida, guerra, disputa, é técnica.

é vazão do ego maior que o ego maior que.

tudo é veloz no corpo em risco dos meninos

e bailarinos de pulos sem impulso, meta sem preliminar, gol sem finta, beijo roubado, equilíbrio-segundo

e assalto.

mas, no cordão de fogo e dínamo cabe, estranho e delicado, um doce monstro:

uma fresta de luz indireta, uma seta torta, uma porta aberta:

cabe, espaçoso e mágico, um gigante urso de pelúcia.

Ana Claudia Abrantes

02/11/2007)

(Cena 11 no Municipal, durante o Festival Internacional Panorama de Dança)

observação


se beijar uma mulher fosse pecado,

o pensamento estaria cheio de idéias,

e uma mancha de má qualidade

escorreria do canto da boca

do vinho tinto bebido no gargalo a duas.

beber o leite de outro leite

é dar de mamar ao desespero.

felicidade que não ousa fugir,

paralisada no intervalo dos julgamentos

e refresco das manhãs; agora

um pouco ainda mais delicadas.

Ana Claudia Abrantes

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Vôo


Acordei. O sol continuou escondido; era uma droga de segunda-feira nublada.

O caminho até o ponto de ônibus mais uma vez foi o mesmo só que não o fiz com tanta pressa. O que eu andava em dez minutos, percorri em meia hora, acreditando que me entretinha com casas e muros...

Estava profundamente deserto. O som de meus próprios passos era a única sensação de presença. Eu me sentia menos pessoa e mais qualquer coisa. Meu olhar trabalhava mais que as pernas. Ao redor, as formas se transformavam ao seu comando.

A lata de lixo foi a primeira a se animalizar. Virei a esquina e nos deparamos. Ela estava deitada em decomposição, suor de detrito escorrendo do corpo, já era cor de ferrugem. A lata agonizava e gemia ao se enroscar no próprio lixo. Sua respiração era pastosa e exalava um forte odor acre.

Eu enxerguei aquela cena, mas não senti nojo, porque também havia algo parecido em mim. Abaixei em posição de cócoras e pude sentir a umidade morna. Bichos, espécies de vermes quase transparentes como minhocas brancas, começaram a saltar de todos os lados e se arrastavam com languidez e preguiça. Um deles veio se aproximando sem que eu sinalizasse movimento algum, veio se aproximando e chegou até meus dedos e subiu pelo meu braço. Com a garganta em suspenso num só movimento de inspiração, eu deixei. Não o perturbei. Deixei que ele descobrisse o meu tecido. Quando atingiu o pescoço, resolveu voltar à mão e se depositou na palma. Foi quando gritei de dor! O bicho se fincou na palma da minha mão com um tipo de agulha biológica, um ferrão próprio daquela estranha espécie. O branco de meu braço constrastou com o rubro do sangue, que começou como uma gota discreta e depois jorrava como vida explodindo. Era a minha agonia.

Não respondi aos primeiros impulsos, por isso não corri, não matei o verme. Meu braço paralisado era o mais sinistro e maior espetáculo para meus olhos. Aos poucos o sangue deixou de jorrar e ficou apenas escorrendo em filete. Meu fascínio era permitir que o parasita se alimentasse... de mim. E assim foi. O pequeno ser sugou-me. Eu já não suava pois não havia gotas para isso. E, fraca, caí na calçada. O tronco ligeiramente voltado para cima, o quadril virado para a direita, uma perna encolhida e a outra levemente esticada, os braços estendidos sobre a cabeça. As mãos ainda tremiam. O sangue no chão, escorrendo em fio lento, ia banhando meu corpo inteiro e não sei quanto tempo fiquei ali.

Desisti. E nem mesmo esperava. Era. Silêncio.

O verme em minhas mãos, gordo, foi modificando o aspecto; adquirindo umas nuanças de cor. Primeiro um brilho de escama que só se vê enviesando o olhar, violeta, levemente rosa, encorpando a cor avermelhando-se, tornando-se corpo opaco amarelo-canário.

Eu não entendia, mas amava aquela cena. Ele desprendeu lentamente o ferrão e eu não vi cicatriz. Senti que naquele momento eu paria. Minhas sangradas mãos deram a luz a um pássaro arco-íris que com seu bico cor de laranja beliscou cada um de meus dedos. Minhas forças retornavam. A impressão era de que uma cachoeira de água muito clara e mansa percorria os meus órgãos; torneava minha pleura, refrescava meus rins, infiltrava-se em meu cérebro.

Recuperava-me.

Ao sentar, percebi que já não havia lata, nem cheiros, nem verme, nem sangue. O sol antes oculto, inundava a rua com raios convictos.

Ainda em minhas mãos, pássaro colorido me olhou. De pé, pude sentir o quanto eu era senhora. Poderia trazê-lo comigo como quem guarda um talismã sagrado, mas aquele olhar de passarinho...

Abri o quanto pude todos os meus dedos e mandei que meu pássaro voasse.

Pássaro colorido voou.



Ana Claudia Abrantes

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

cheiro envasado a vácuo

há um modo de tirar o cheiro de um corpo; descobri ontem.

descobri que se os cheiros se misturam demais, deslocam-se da carne para o ar como o som.

depois é puxar a fragrância numa sucção estalada e guardar na boca;

suave e ousadamente como se guardariam alfinetes na bochecha.

o cheiro do outro vai se esvaindo, vai murchando num assobio em u.

desce também pelas narinas aerando a barriga, e molha a calcinha.

nesse estado, o cheiro se liquefaz, untando a cintura, as costas, a dobra dos joelhos.

até ir se solidificando em coriza noturna, depois em baba que quica na pele queimada do cóccix.

aí se mistura ao suor para cristalizar o sal.

então tem-se um produto novo que não está à venda nas farmácias, mercados, nem é patenteado ainda:

um concentrado umectante em pó, de cheiro de sal de gente, envasado hermeticamente com a força das pernas.


Ana Claudia Abrantes

domingo, 16 de setembro de 2007

brevíssimos VI

tendência antiga

melhor tirar o caps lock
e só deixar o negrito.


deslocamento

o arco-íris não é na Lapa,
é aqui.


sustentabilidade

carinho não é coisa que se desbaste.


Ana Claudia Abrantes

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

liquefeita


mulher é algo que um dia vaza.

conquista os subterrâneos como infiltração de séculos,

escorrendo até onde o silêncio é mais agudo.

com úteros que abrigam mãos em concha

elas também se protegem côncavas, e às vezes explodem,

recebendo o universo.

porque tudo o que é feminino ressuscita,

e uma flor, antes de nascer, também fica em casulo.


Ana Claudia Abrantes

liquefazendo


subir o rio em estação seca, desafiando o equilíbrio das pedras.

descobrir onde se esconde a água sob túneis negros.

imaginar a enxurrada, submergindo esses recantos.

desejar o frio de um batismo ateu e místico.

decantar a palavra e esperar.

depois dragar até os substantivos.

deixar falar o líquido.


Ana Claudia Abrantes

portal

pássaro-abelha,
árvore de beija-flor,
pata de truta,
jardim de pedras.
tudo o que habita o Sítio do Barbudinho
está deslocado na paisagem.


Ana Claudia Abrantes

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Sete de setembro


A última coisa que os praieiros pensam hoje é na consolidação da colônia fulana de tal como um país soberano (?) chamado Brasil. Um país de caras lindas loiras, brancas, morenas, negras, sararás e, por que não, provisoriamente ruivas. E essas se espalham feito febre na cidade. Do roque ao samba, cabeças vermelhas fazem a moda. Uma droga. Vejo-me obrigada a retroceder ao toque colorido que, penso, caíra-me tão bem. Vi que aos poucos vou acastanhando minha imagem e perdendo a força quente dos primeiros meses bandeirantes com a tinta seis barra quarenta e sete exótico. Eu havia demorado a acostumar, mas depois achei que já havia nascido assim, vermelha...

A última coisa que os praieiros pensam hoje é na consolidação da colônia fulana de tal como um país chamado Brasil. Um país de gente pobre no sinal. Um não tem a extremidade dos dois braços, é descoordenado, não tem pernas; é transportado por uma cadeira-de-rodas guiada pelo peso gordo de um jovem não-trabalhador, que certamente só tem o ofício de empurrador de portador de necessidade especial do sinal do Recreio ao lado do Mundial em direção à Linha Amarela. Duas necessidades que se cruzam na mesma porcaria de encruzilhada e mancham a oração-no-carro do meu dia. Que coisa feia minha última frase! Esse Deus gordo e barbudo sempre me castiga quando pronuncio coisas fora da ética e da estética. Perdoe-me, Amigo, mas o Rio de Janeiro não deixa ninguém em paz, em silêncio interior ou em felicidade de dez minutos. Não tenho trocado (mesmo!) e o da cadeira sai reclamando graves impropérios contra a não-solidariedade, indignidade, miséria humanas. Eu também mancho o dia dele com meu carrinho tão pouco para mim, meus óculos escuros (está muito claro, poxa!), um emprego, uma cama de família, algum raro ócio. A fileira de carros irmãos (alguns nem tanto...) do sinal mancha aquela vida de falta e, ô, Barbudo, impossível não perguntar “Por quê?” É isso, “por quê?” Tão perto da praia, uma praia tão linda, mar aberto, areia clarinha, horizonte amplo, mas ali no sinal o horizonte daquelas misérias é nenhum? Para quê? Para poder ter concurso de fotografia sobre o Rio, cidade de contrastes? Para isso? Ei , ei, Senhor Gordo, é isso?

A última coisa que os praieiros pensam hoje é na consolidação da colônia fulana de tal como um país chamado Brasil. Então, feriado é dia de ligar para os amigos e ver como estão. Ela me atende guiando sua bicicleta econômica pelo trânsito em direção à praia nossa de todo fds com sol, passa pelo túnel berrando obscenidades contra minha discplicência de amiga de longa data e, no fim, me convida para tomar uma cerveja em Santa à noite, depois de eu trabalhar em casa, e ela também. Vai dispensar todo mundo para ficar só comigo, gostosa.

A última coisa que os praieiros pensam hoje é na consolidação da colônia fulana de tal como um país chamado Brasil. E eu penso que o trabalho me espera, mas a exposição do Rosa também, meus primos queriam ir comigo também, eu queria conseguir ver meu gentleman amigo virtual que espera meu tempo, uma anja diabinha sugeriu-me infernizarmos o Morro da Urca no feriado ou atacarmos o Jorge Ben Jor no Circo, mas eu tenho onze envelopes de carga para atualizar até segunda-feira e prefiro amanhã ir me recolher no sítio onde vou poder trabalhar um pouquinho junto da natureza , junto de amigos velhos e outros provavelmente novos e, quem sabe, junto de um pouco de paz que aqui no Rio não está existindo para mim. Meu Rio querido/odiado, meu bem, meu mal, amém.

A última coisa que os praieiros pensam hoje é na consolidação da colônia fulana de tal como um país chamado Brasil.

Desculpe, mas eu também não consigo hoje. Não consigo sentir um país. O sol, que há muito não vinha, finalmente deixou o céu aberto, com nuvens brancas como a minha pele a esperar os raios mais amenos de um dia delícia como esse, e eu aqui tentando parar de escrever essa crônica que insiste em jorrar abobrinhas e verdades capazes de me distanciar do trabalho. A praia deve estar cheia de cariocas que não agüentavam mais os dias nublados que a Calcanhoto já havia sinalizado como terríveis para nós. A praia deve estar cheia de trabalhadores que desafiam as leis da física no ônibus, no trânsito, no trem. Cheia de gente estafada, esbanjando alegria nas areias que escaldam nossas desesperanças. O sol finalmente veio, afinal “para todo o mal, a cura”.

Perdoe-me, Deus. A última coisa que eu penso hoje é que a fome de tudo ainda mata meus irmãos, meus não-irmãos, meus amigos, meus assassinos. Porque olhando da janela pra tudo o que existe e que é lindo, olha aquele menino..., tive a resolução de decretar por ora a minha independência, mesmo que amanhã seja novamente o dia de eu ser colonizada pelos prazos e papéis, como tantos brasileiros. E aqui vou eu à praia.


Ana Claudia Abrantes

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

roda-gigante

topo, entreato, chão: a vida é feita de roda-gigante.

vira novelo em desenredo quando um fio solto, destecendo a narrativa,

desenrola a madrugada.

a noite segue em reta à frente em flash back, vida pião.

o brinquedo, num tranco, em rotação sobre a mão de menino,

solta-se suave, desafiando o ar para chegar ao chão num baque.

e recupera o eixo ao se inclinar até sentir cheiro da terra.

então, ferindo com a agulha o coração, o cimento,

num giro intenso, pião transformará a areia em pólvora.


Ana Claudia Abrantes

domingo primavera outono


quando vagabundas poéticas ficam em crise, a possessão é coletiva.

e o verão é ali no meio da sala.

noite fresca em Santa Teresa com vinho, café e fumaça.

me passa? era só o que faltava, mas não faltava

porque o passe foi dado ali mesmo com fogo, água e vento

que da janela fria anunciava o cedo/o medo de segunda-feira.

Ana Claudia Abrantes

amor embalsamando as horas


nem poema erótico nasce de oficina avessa ao fértil das ternuras

puras orgias não se fazem em uma sexta.

porque feitiço é coisa demorada e lânguida

tem preguiça de conquistar, uma insolência retardada,

um descompromisso com as horas e a concorrência.

venha o inseguro e o passar que a vida é dura, mas leve (?)

para todos, até os levemente manchados

de hematomas que fragilizam os capilares do esterno.

tem gente que se veste de fora pra dentro.

tem gente que conta quantidades e datas,

tem gente que precisa de gente,

tem gente que nada.

mas não ter pressa não é desgastar o tempo

em miséria e sede escassa.

há de se ter consenso

entre um gancho e o pulo do gato.

movimento também é estático,

mas livrai-nos, Deus, das completas múmias,

as múmias paralíticas.

sábado, 1 de setembro de 2007

outro lugar

inesperadamente

as paredes se movem para o centro

apenas um metro quadrado no teto

desde o alto encontra o chão

as poucas fotografias

escondem o rosto dos amigos

e o espelho das janelas

se fecha

na cortina

a porta aberta adverte

a TV ligada alerta

e nada diverte

uma cama por fazer

uma avozinha dormindo

na cabeceira um livro

de espíritos

e aqui se visita outro lugar.

Sem título

Os meninos aqui têm aula de música e estou ouvindo um "Noite Feliz" ao som de violões e flautas vindo da outra sala. Só estou me interrogando por que justo o "Noite Feliz" agora em finzinho de abril. Mas está gostoso. Ih... pararam... Saco! Ela deve estar na parte teórica a professora. É bonita ela; não de uma beleza instantânea, dessa que faz homens e mulheres imantados acompanharem a efêmera deusa (ou deus) no seu caminho de glória vã. Não. Ela tem um quê de delicadeza misturada com sofisticação, uma simpatia combinada a uma polidez que se reflete polida nos cabelos negros quase à cintura e na forma longilínea. Uma fêmea, mas tão feminina. E distante... ah, distante como se penetrasse às vezes num vazio até de nada meditador, distante como se soubesse. Como se soubesse.
O menino ligou o ar-condicionado mais forte agora, não vou suportar com essa garganta pedindo água e calorzinho de chá de mãe, ou de cachaça. Saco! Tenho a impressão de ele estar olhando por trás a tela do computador. O que será que tanto escrevo? "O quartel pegou fogo, a polícia deu sinal, acuda, acuda, acuda a bandeira nacional." Os flautistas, menino, estão aqui do meu lado, vou avisar à minha outra amiga anacrônica que os flautistas de Conservatória se esconderam na sala de música. São bochechudos.

Escrevo como se a vida não bastasse _ idéia de Fernando Pessoa. Mas não basta mesmo! Ele, o Pessoa, emenda que a arte e a literatura estão aí pra mostrar que essa merda toda não é suficiente, não é a vida que se tem por dentro nem por fora. É rente, é chão. E o que nos faz levitar? Os "levantados do chão" não levitam desgarrados de sua terra. Alguns alunos que tive, pobrinhos, pobres ou pobrezinhos não levitavam no caminho que faziam de volta pra casa zigue-zagueando entre balas perdidas e caminhos impossíveis porque simplesmente eles não haviam aprendido a acreditar. "E o salva-vidas não está lá porque nãovemuuuuuus".
Eles agora começaram um "Cai cai balão" só de flautas e escuto-a dizer que não parem. O menino da sala do computador. Nunca aprendeu nenhum instrumento. Não deve ser legal que ele veja seu nome aqui. O sinal toca e o vento do ar-condicionado parece estar apontado pra minhas amígdalas. Mas ele é um fofo! "Professora, se o ar estiver muito frio, a senhora me avisa que eu diminuo." Eu estava me encolhendo... Que idade ele tem, 22, 24? Alguns de meus alunos têm menos, uns dezoito e a minha pretensão me faz acreditar que precisam tanto de mim... Preciso deixá-los, ir embora. "Acuda, acuda, acuda a bandeira nacional". Moça linda e distante como garça de penas negras, conta pra eles o sentido dessa canção. Acuda, acuda, acuda a bandeira nacional! Tá, tá, tá, preciso ir, tenho uma depilaçãozinha marcada no salão aqui perto e não posso acudir mais ninguém agora.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

belvedere

belvedere é belo

vide o reverso do mergulho do estar de pé

olhando o mergulho que se queria dar na paisagem.

belo é ver o céu que se prolonga no horizonte

e que escorre até a copa das árvores.

belvedere é o caldo, a pasta, o caudaloso rio.

belvedere é sempre um convite ao suicídio.

e de intenso hipnotiza os olhos,

paralisando a voz ativa do ego.

única beleza toda que não se possui nem se alcança

porque, ao se alcançar, desmancha-se

em parte solta e insossa.

belvedere só o é assim:

intangível e muito ele próprio

panorama de si.

existência indenpendente

como deveria poder ser toda beleza.

domingo, 26 de agosto de 2007

desencontro II

o molde de um rosto em outro:

impossível respirar com essa máscara

o arco-íris não existe

mas está ali.

alfa e ômega


emplastra pastosa massa de maná na alma.

acende perene vela de beleza à mente.

inflama ígnea íris, hímem

dos olhos voluptuosos de hórus

no escuro tumulto, vulto

da alma emplastrada da massa de húmus.

sábado, 25 de agosto de 2007

brevíssimos V

tradução (ou auto-retrato)

pasto passo peco perco:
vaca louca puta distraída.


da natureza de todas as coisas
uma mulher que reúne ternura e desejo era sua amante por natureza.


no armário
queria tanto me foder
e não eu a você.

flores outras

--- ânus é espaço apertado entre um corpo e um botão de nada.

é o máximo, porém mínimo de tudo: não tem olhos, boca, mágica.

é trágico como todo fim em ágil desalinhar-se de bicho no cio

_ é frio.

mas cabe nos intervalos entre um não e um sim;

cabe no amor, no a-amor, em mim.

cabe e, com porta incólume,

comporta incólume o amor, o a-amor, a ti

nesse incognoscível jardim de flores.

construção

às vezes vida é embrulho

flecha crônica.

então é desfazer os nós

e levantar paredes do chão

e refazer a casa

pedra a pedra?

de corte e colagem.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

O enforcado

A noite escura da alma

agatha negra de neblina em transe

em crise em filme de ficção natural

de um mal que a película não quer

suportar é além da força que está

sobre os pés.

A noite escura da alma

é azul marinho do escuro céu

sem véu de estrelas nem láctea

imagem de brancura diáfana.

A noite escura da alma

está dependurada e crucificada

como um cristo reverso enforcada

no meu eu sem outro meu.

A noite escura da alma

está presa na sala escura

projeção sem força de luz

sem auxílio sem nome sem giz

numa lousa queimada de cinza.

A noite escura da alma

não vomita não mija não cospe,

enjoa.

Agüenta, entope os filtros

da inocência e pureza, sem propósito

sem grito, sem festa, sem lenço

de papel ou abraço.

A noite escura da alma

acompanha passeia pastosa

sem ar sem aerado

arenosa noite escura sem fim.

A noite escura da alma

me gruda me prende me chama

me cala me dosa me rende

me doma com nojo me inflama

sem misericórdia sem mistério

sem verso sem prosa

sem tempo sem medo sem vento

sem cedo.

A noite escura da alma

agarra

como pigarro encarnado

na garganta sem voz nem

canto ou saliva

nem sonho nem nada.

A noite escura da alma

me convida

ao tédio à cerveja à igreja

ao samba ao beijo ao remédio

à tarja preta.

A noite escura da alma

me alucina

me dói a cabeça e vacina

a ingenuidade.

A noite escura da alma

me empurra me porra

contra a parede chapisco

me marca pro resto de mim.

A noite escura da alma

me conclui.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

das hipóteses

se eu tivesse te encontrado ontem

e viéssemos para essa varanda como agora

hoje à noite ainda seria lua cheia.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

signo e coisa II (ou explicação)

enseada era serenata líquida de som em harmonia
serenata era de vida, de deixe ir
enseada era serenata era esse
porque não sabíamos
e conhecer que uma enseada era aquilo a que não chamávamos
tirou de nós o mistério
e pensar levou-nos à metafísica alguma
e decifrar cegou-nos aos melhores códigos
de não dizer que comunicava
uma enseada de peso, tato, fluido, arrepio e cor.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

ambrosia

ambrosia soa em todos os sentidos:
açúcar deleite delicadamente vinho tinto demi-sec.
tamarindo e caramelo, yakult e caqui líquido,
e um cafezinho.

gustavo gustativo,
só mais uma provinha, pra eu limpar as papilas

sábado, 11 de agosto de 2007

signo e coisa


a palavra beijo não é molhada nem quente.

a palavra ódio é um mergulho nas vísceras

da imaginação incorrespondente ao ódio.

“desejo” é pouco para o que se sente

quando uma química ancestral

psicologicamente motivada e ardente

contrai-se em dois.

a palavra medo é o único contrário da palavra amor

e obviamente contrária à palavra entrega.

é carregada de ego, este que só se entrega no silêncio.

a palavra amor não é o amor.

Primeiro de maio

Bebê enterrado vivo pelos pais, ex-policial é acusado de chacina, cartola do Fogo chama torcida do Mengão de f.d.p. e mulambada, bando vendia vagas na faculdade por R$ 70 mil, traficante empresta arma para adolescente matar menino, Tati Quebra Barraco vai posar nua. Como? O quê? Onde? Quem viu? Quem viu um anjo, quem acredita? Se eu dissesse que vi alguém sorriria? Se o mundo implodisse em tons expressionistas e lentamente, surrealistamente, a bunda da Tati fosse escorrendo como os relógios de Dalí e como fazem com o tempo todas as bundas, se o bebezinho sobrevivesse... alguém acreditaria? Alguém ainda crê em milagre? Que lugar é reservado aos que ainda acreditam? Onde estão essas pessoas? Que lugar é reservado aos que não acreditam, mas não encontram lugar aqui? Como é possível encontrar lugar? Somos como ratos que se matam devido ao superpovoamento? Somos cachorros no cio reproduzindo comportamentos esdrúxulos, criando ninhadas que já nascem doentes? Estamos eternamente doentes, com um cancro instalado nas mãos, com estigmas de um Messias por quem esperamos, para quem oramos, por quem esperamos como a um autêntico Dom Sebastião? Sebastianismo de espera, sebastianismo de engorda para abater a carne de tantos bastiões brasileiros como eu que vão para o abate tão cordeiros de deus. E como porcos recebem o carinho, o beijo de Judas antes da morte: “apedreja essa mão vil que te afaga / escarra nessa boca que te beija.” Sem nojo agora eu o entendo. Entendo a marca de dentes que fica em quem foi mordido, entendo que uma gota de sangue entre minhas pernas é símbolo de uma dor inevitável. E como sangram os porcos traídos, como sangram as almas dos bebês enterrados, como sangram meninos mortos por adolescentes, sangro eu, todo mês, todo dia. Assim também, desde a Idade Média sangravam cristãos arrastados como o menino João. Tem fim? Tem solução? E, tornada uma gota vermelha, eu, que era azul por fora e vermelha por dentro, hoje entendo a paixão e a guerra que fazem o mundo procurar o sangue de que é feita a vida e a morte. Entendo que não consigo mais ser azul e me inclino, em vísceras avermelhadas. Mas os shows embalam o feriadão. O dia do trabalho será comemorado ao som de Daniela Mercury (foto) e Beth Carvalho, que fazem show de graça hoje, em Copacabana. Em Realengo, quem faz a festa é Elba Ramalho. Faz sol, temperatura amena no Rio e o primeiro de maio segue sem muitos protestos. Protesto eu. Muda, pálida, mulher. Mulher aqui no século XXI. Uma gota de sangue... coagulada.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

brevíssimos IV

haickryia (haicai do kryia)


um velho sábio

respira

uma gota volta ao oceano


viver

talvez esse o equilíbrio entre medo e aventura: ventura!


carla


quando seguro sua mão, sinto-me íntima de um milênio inteiro.

brevíssimos III

coan

Mena Barreto até a praia

minha oração pára

quando vejo o Pão-de-Açúcar.



dor do passado



dar as costas ao Pão-de-Açúcar


deixar ir II


mesmo que seja dar as costas ao Pão-de-Açúcar.

brevíssimos II

desejo

manuel, manuel

eu queria que o espírito de Deus voltasse a se mover sobre a face das minhas águas.



femina

amando amando amando almando almando almando a mando

de quem, puta quiu pariu?



amor

quase um paradoxo

um pouco de ácido no algodão-doce.

sobre a terra


espirais em diagonal

num plano acidentado de vontades

artes contrapartes e enredos

180 graus de evoluções

na avenida.

no limite da fronteira tênue

entre sim e não, céu e chão,

particulares partituras pequenas

num globo só não cabem.

o inferno e o paraíso de aventuras,

o fio inventado ou recriado

de dramas e ficções cruas.

verdades criativas e mentiras factuais

cada passo um desatino,

a cada escolha um destino.

sem opção no arbítrio

sem visão do outro dia,

sem academia.

via infinita

via líquida

via sem trégua:

gente naïf sobre a Terra.

fenda


afonia e rouquidão

disfonia cacofônica

som áspero em garganta árida

areia na deglutição

severo tom vazio de nota

música dissonante assonância obliterada

merda gástrica na mucosa: afta.

ácida faringe e laringe flácida,

claudicante, intermitente, melodia doente

anemia do timbre compactado em gás letal

ferindo a digital, maculando a marca

de uma canção que insiste em cantar

tenaz: hepática.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

poema de presente

(ou Para aquele ponto de Arnaldo Antunes)

A vida daqui é linda

talvez porque seja finda

talvez porque seja ainda

surpresa que não termina.

A rua parou na poesia

e pena que não seja minha

estrofe de presente é linda.

Talvez porque seja sonho,

emblema da Siqueira Campos

onde uma caminhada paralítica

aterrissa

no poema

e desfaz, por um segundo, o teorema: nó.

Golpe súbito, poema em pó

que se chupa como ki-suco,

deixando vermelha a língua,

vermelho o vestido e o dia

se eterniza na geografia

de uma estação

É verão!

Ana Claudia Abrantes

17/02/2007

Toda vez que desço na Siqueira Campos eu me deleito com aquele poema de Arnaldo Antunes. É um minuto de presente que eu retiro do meu dia, em dia ou atrasada, não importa, esse presente em minuto é meu. E assim o poema também fica um pouco meu. Um ponto dessa cidade que marca a minha vida, que me marca e eu também me dou de presente pra mim nessa hora. É um ritual, um segredo do meu espírito que se recusa a não se deliciar repetindo, repetindo em voz alta o suficiente para eu ouvir que a vista é linda, talvez porque seja linda, talvez porque não se veja e por isso mesmo seja mais linda... ainda.

incostura


desenho incompleto

beijo inconsútil iminente

desilusão do não

casa desconfigurada

desplanejada distante

divaga

nos desafios limite

tamanho castelo

de góticas fadas

desenho incompleto

constantemente divaga

roupas, bolsas, trovas, tralhas

imprescindíveis que se deixam cair

pelo caminho estranho, extra-ordinário

onde um louco impera suas ordens corretas

e incoerentes

desenho incompleto

círculo que se quer fechado

para abrigar o vácuo

como um básculo que convida

a ventania

desenho incompleto

99 peças

soltas no espaço de um intervarlo

desejo de consumir a falta

como fogo que consome o ar

ferramentas inúteis em terreno árido

paralelo infinito de caos e tédio

e suspensão em silêncio eternizado

no semi-círculo fechado

de um universo:

simples

complexo

espiralado.

por acaso


quando vejo o não escolhido

fazer sentido na narrativa

me ativa

uma luz

que deduz no distraído

enredo de uma linha

o equívoco abstrato

do interligado em foco

unívoco voto

de insegurança da vida:

surpresa caída no caminho.

psicografia


o vento depressa

o tempo me resta

na monotonia de horas vis

meu verbo febril

ferrugem

derrama o pouco que transborda o muito que escorre a imagem que esvai o doce que explode o corpo que dissolve a alma que corrói.

lado A/ lado B




elas abraçam e se movem fixas

mulher protege e pede proteção

mulher protegida entrega o perdão

do ventre a força esquálida

abriga, frágil, inválida

forminha anoréxica

do útero a fêmea apaga

a força o rancor as águas

masculinas

do lado escuro clara escuridão

dois tons predominantes, dor

do outro mundo imagem colorida

em tão clarividente amor

é frio

é festa!

é filho

é sexo!

é sombra

é brilho

é drama

é nexo

E em tal distância, o complementar:

na torçao dos abraços

o desalento, que um beijo ampara.

Ana Claudia Abrantes

(Sobre um abraço em Guayasamin e "O beijo" de Gustav Klimt... ou sobre tantas outras coisas também)

domingo, 5 de agosto de 2007

se soprarmos

da cal, sai nuvem
da nuvem, desenho
do desenho, idéia
da idéia, vento
do vento, tempo
do tempo, lembrança
da lembrança, beijo
do beijo, borboleta
que sopra onde quer.